Giotto di Bondone -
Natividade
Cappella Scrovegni, Pádua
(1304-06)
Considerando os fatos numa vasta
perspectiva histórica, o Santo Natal foi o primeiro dia de vida da
civilização cristã. Vida ainda germinativa e incipiente, como os
primeiros clarões do sol que nasce; mas vida que já continha em si
todos os elementos incomparavelmente ricos, da esplendida
maturidade a que se destinava.
Com efeito, se é bem verdade que a civilização é um fato social,
que para existir como tal nem sequer pode contentar-se de
influenciar um pequeno punhado de pessoas, mas deve irradiar sobre
uma coletividade inteira, não se pode dizer que a atmosfera
sobrenatural que emana do presépio de Belém sobre os circunstantes
já estava formando uma civilização. Mas se, de outro do,
consideramos que todas as riquezas da civilização cristã se contém
em Nosso Senhor Jesus Cristo como em sua fonte única,
infinitamente perfeita, e que a luz que começou a brilhar sobre os
homens em Belém havia de alongar cada vez mais seus clarões, até
se estender sobre o mundo inteiro, transformando mentalidades,
abolindo e instituindo costumes, infundindo espírito novo em todas
as culturas, unindo e elevando a um nível superior todas as
civilizações, pode-se dizer que o primeiro dia de Cristo na terra
foi desde logo o primeiro dia de uma era histórica.
Quem o haveria de dizer? Não há ser humano mais débil do que uma
criança. Não há habitação mais pobre do que uma gruta. Não há
berço mais rudimentar do que uma manjedoura. Entretanto, esta
Criança, naquela gruta, naquela manjedoura, haveria de transformar
o curso História.
E
que transformação! A mais difícil de todas, pois que se tratava,
não de acelerar o curso das coisas no rumo em que seguiam, mas de
orientar os homens no caminho mais avesso a suas inclinações: a
via da austeridade, do sacrifício, da Cruz. Tratava-se de convidar
à Fé um mundo apodrecido pelas superstições, pelo [original
truncado, mas foi ordenado] sincretismo religioso e pelo ceticismo
completo. Tratava-se de convidar para a justiça uma humanidade
afeita a todas as iniqüidades: o domínio despótico do forte sobre
os fracos, das massas sobre as elites, e da plutocracia - que
reúne em si todos defeitos de umas e outras - sobre a própria
massa. Tratava-se de convidar ao desapego um mundo que adorava o
prazer sob todas as suas formas. Tratava-se de atrair para a
pureza um mundo em que todas as depravações eram conhecidas,
praticadas, aprovadas. Tarefa evidentemente inviável, mas que a
Divina Criança começou a realizar desde o seu primeiro momento
nesta terra, e que nem a força do ódio judaico, nem a força do
domínio romano, nem a força das paixões humanas poderia conter.
* *
*
Dois mil anos depois do Nascimento de Cristo, parecemos ter
voltado ao ponto inicial. A adoração do dinheiro, a divinização
das massas, a exasperação do gosto dos prazeres mais vãos, o
domínio despótico da força bruta, as superstições, o sincretismo
religioso, o cepticismo, enfim o neo-paganismo em todos os seus
aspectos invadiram novamente a terra.
Blasfemaria contra Nosso Senhor Jesus Cristo quem afirmasse que
este inferno de confusão, de corrupção, de revolta, de violência
que temos diante de nós é a civilização cristã, é o Reino de
Cristo na Terra. Apenas um ou outro grande lineamento da antiga
cristandade sobrevive, abalado, no mundo de hoje. Mas, em sua
realidade plena e global a civilização cristã deixou de existir, e
da grande luz sobrenatural que começou a fulgir em Belém muito
poucos raios brilham ainda sobre as leis, os costumes, as
instituições e a cultura do século XX.
Porque isto? Teria a ação de Jesus Cristo - tão presente em nossos
tabernáculos como na gruta de Belém - perdido algo de sua
eficácia? Evidentemente não.
E,
se a causa não está nem pode estar nele, por certo está nos
homens. Vindo a um mundo profundamente corrompido, Nosso Senhor e
depois dele a Igreja nascente encontraram almas que se abriram à
pregação evangélica. Hoje, a pregação evangélica se dissemina por
toda a terra. Mas cresce assustadoramente o número dos que se
recusam com obstinação a ouvir a palavra de Deus, dos que pelas
idéias que professam, pelos costumes que praticam, estão
precisamente no pólo oposto à Igreja. "Lux in tenebris lucet,
et tenebrae eam non comprehenderunt".
Nisto, só nisto, está a causa de ruína da civilização cristã no
mundo. Pois se o homem não é, não quer ser católico, como pode ser
cristã a civilização que nasce de suas mãos?
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Espanta que tantos homens perguntem qual a causa da crise titânica
em que o mundo se debate. Basta imaginar que a humanidade
cumprisse a Lei de Deus, para que se entenda que ipso facto a
crise deixaria de existir. O problema, pois, está em nós. Está em
nosso livre arbítrio. Está em nossa inteligência que se fecha à
verdade, em nossa vontade que, solicitada pelas paixões se recusa
ao bem. A reforma do homem é a reforma essencial e indispensável.
Com ela, tudo estará feito. Sem ela, tudo quanto se fizer será
nada.
Esta é a grande verdade que se deve meditar no Natal. Não basta
que nos inclinemos ante Jesus Menino, ao som dos hinos litúrgicos,
em uníssono com a alegria do povo fiel. É necessário que cuidemos
cada qual de nossa reforma, e da reforma do próximo, para que a
crise contemporânea tenha solução, para que a luz que brilha do
presépio recobre campo livre para sua irradiação em todo o mundo.
* *
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Mas como conseguir isto? Onde estão nossos cinemas, nossos rádios,
nossos diários, nossas organizações? Onde estão nossas bombas
atômicas, nossos toques, nossos exércitos? Onde estão nossos
bancos, nossos tesouros, nossas riquezas? Como lutar contra o
mundo inteiro?
A
pergunta é ingênua. Nossa vitória decorre essencialmente e antes
de tudo de Nosso Senhor Jesus Cristo. Bancos, rádios, cinemas,
organizações, tudo isto é excelente, e temos obrigação de o
utilizar para a dilatação do Reino de Deus. Mas nada disto é
indispensável. Ou, em outros termos, se a causa católica não
contar com estes recursos, não por negligencia e falta de
generosidade nossa, mas sem nossa culpa, o Divino Salvador fará o
necessário para que vençamos sem isto. O exemplo, deram-no os
primeiros séculos da igreja: não venceu esta, a despeito de se
terem coligado contra ela todas as forças da terra?
Confiança em Nosso Senhor Jesus Cristo, confiança no sobrenatural,
eis outra lição preciosa que nos dá o Santo Natal.
* *
*
E
não terminemos sem colher mais um ensinamento, suave como um favo
de mel. Sim, pecamos. Sim, imensas são as dificuldades que se nos
deparam para voltar atrás, para subir. Sim, nossos crimes e nossas
infidelidades atrairão sobre nós a cólera de Deus. Mas, junto ao
presépio, temos a Medianeira clementíssima, que não é juiz mas
advogada, que tem em relação a nós toda a compaixão, toda a
ternura, toda a indulgência da mais perfeita das mães.
Olhos postos em Maria, unidos a Ela, por meio dela, peçamos neste
Natal a graça única, que realmente importa: o Reino de Deus em nós
e em torno de nós.
Todo o resto nos será dado por acréscimo.